autocuidado feminino
#22 -- ou: cuidar de si mesma de um jeito não ca(pitalista)fona.
Eis que temos um novo ano, com novas possibilidades, novos planos e, obviamente, novas neuras talvez não tão novas assim. É claro que, pasme minha querida leitora, resolvi começar 2025 me aprofundando em nóias que ocuparam meu HD interno durante muito tempo, mas que ainda não haviam sido elaboradas o suficiente a ponto de se acomodarem na minha existência e, eventualmente, se transformarem em ações para uma vida mais leve.
Mas agora cheguei lá.
E aproveito esse grande evento chamado “primeira news do ano” (rs) para falar sobre a minha perspectiva dele, o famigerado autocuidado feminino — mas de um jeito não cafona ou piegas, com a devida pronfundidade e atenção que o tema merece.
Pegue seu café, dê play na trilha sonora do dia & let’s go.
Se você está aqui há mais tempo, provavelmente acompanhou a minha saga em assumir uma postura mais compassiva comigo mesma no último ano. Para o budismo, que é minha prática espiritual há cerca de sete anos, compaixão é a partilha do sofrimento — compadecer-se: padecer junto.
Ou seja, tenho me empenhado ao máximo em acolher meus próprios momentos de amargor e desconsolo da mesma maneira ou com o mesmo afinco que sempre fiz com aqueles por quem cultivo afeto. É um desafio e tanto, como você deve saber, mas essa prática me trouxe algumas reflexões que se estenderam para outras áreas da vida e para lugares sociais que vão além das minhas particularidades personalíssimas.
Afinal, nenhuma experiência é individual.
O ato de me compadecer com minhas próprias falhas, por fim, revelou-se uma forma prática, direta e muito efetiva de cuidar de mim. A partir daí, comecei a questionar se, por óbvio e consequência, não seria esse um ato de autocuidado?
O problema é que toda vez que pensava na palavra autocuidado, isso me soava metade cafona e metade capenga, tal como já havia acontecido antes com palavras como sororidade ou gratidão. Palavras que, essencialmente, são poderosíssimas e cheias de significantes mas, para mim, esvaziaram-se de sentimentos ao serem apropriadas pelo capitalismo — leia-se mercado, indústria, mídias sociais, veículos de comunicação e qualquer outra estrutura com poder de transformar qualquer pauta em dinheiro.
Nos últimos anos, e com a ascenção cada vez maior das redes sociais como principal veículo de comunicação e influência, temos visto crescer movimentos que valorizam o corpo livre, o diferente, a diversidade e a inclusão, o antirracismo, e tantas outras pautas que, de fato, impactam diretamente a vida de grupos historicamente marginalizados.
Ao mesmo passo, vimos nascer e materializar-se uma ideia de cuidado feminino que partia de um pressuposto de desigualdade de gênero1: você, mulher, que passou a vida inteira se dedicando ao cuidado de outras pessoas, está na hora de se cuidar também.
Até aqui, coisa linda!
Mas, numa velocidade impressionante, surgiram marcas/empresas/ serviços que, não raramente, associam esse autocuidado feminino a uma rotina de skincare e procedimentos estéticos. A um lookinho novo e unhas bem feitas. Gastos, superficialidades, soluções express.
E, veja, não há nada de errado em investir (inclusive financeiramente) em skincare e procedimentos estéticos e looks novos e etc etc etc, eu mesma amo, faço e indico pras amigas. A questão aqui é perceber que o país que mais faz cirurgias plásticas no mundo é, também, o país mais ansioso do mundo.
Digamos que, talvez, um bom hidratante tenha lá suas vantagens mas não cumpra exatamente o papel de cuidar da gente. E é claro que esse crossover de ideias que se instalou na minha cabeça não possui nenhuma relação direta (ou centífica) entre si, mas me levou a questionar exaustivamente over and over again:
o que é esse tal de autocuidado, afinal?
Numa perspectiva mais teórica, a Organização Mundial da Saúde define o autocuidado como “a capacidade do próprio indivíduo em realizar ações que visam à preservação de sua saúde, ao seu desenvolvimento e bem-estar”2. Em outros conceitos, também encontramos com frequência a ideia central de que o autocuidado é a prática de atividades executadas pelos próprios indíviduos em seu benefício, com o objetivo de fazer a manutenção de sua vida e de seu bem-estar.
Em suma, concluí que autocuidado é agir em prol de si mesma com a intenção de aumentar sua qualidade de vida e seu bem-estar. Ou seja, foi aqui que percebi que a minha rotina com niacinamida3 e escalda-pés4 não tinha tanta relevância assim, apesar de seus benefícios.
Cheguei, por fim, a três ações que considero as mais importantes na manutenção da minha qualidade de vida; aquelas que impactam diretamente o meu nível de felicidade e autoestima; que me fazem sentir que estou no controle daquilo que me diz respeito e que é minha, e apenas minha, responsabilidade.
se autocuidar é impor limites
E, sobretudo, aprender a dizer “não” para os outros para que isso abra espaço para o nosso próprio “sim”. Sempre que converso com outras pessoas, principalmente mulheres/amigas, sobre a facilidade que tenho em dizer “não”, vejo como elas ficam surpresas. Afinal, mais uma vez esbarramos numa experiência coletiva em que as mulheres sequer podiam viajar sozinhas até pouco tempo atrás — imagine então dizer “não” quando algo as incomodava!
Fomos ensinadas a suportar o desconforto, a aceitar que “as coisas são assim mesmo”, a relativizar a violência perpetrada contra nossos corpos e emoções, a naturalizar a violação de nossos direitos básicos, a construir uma vida da qual não somos parte integrante, a priorizar todo o resto enquanto nunca somos a prioridade.
Como, então, impor limites se nem sabemos com clareza onde começam e terminam as nossas próprias margens? É confuso, dói e ainda deixa o gosto amargo na boca de que estamos fazendo algo errado.
Mas como já dissemos ali em cima, se autocuidar é agir em prol de si mesma e, portanto, não existe outra forma de fazer além de simplesmente começar. Primeiro, em situações mais simples, como quando você diz “não” a uma festa que não está muito afim de ir; depois, aprende a dizer “não” quando percebe que estão desrespeitando seus valores pessoais e sua integridade enquanto mulher.
Um passo de cada vez.
É como dizem: cada vez que dizemos “não” para outras pessoas, estamos dizendo “sim” para nós mesmas. E isso não é apenas uma forma de demonstrar autorrespeito, como também é o caminho que traçamos para mostrar às outras pessoas como elas devem nos tratar e respeitar.
Ouso dizer que “não” talvez seja uma ótima palavra para você incluir cada vez mais no seu vocabulário em 2025.
se autocuidar é fazer por si
aquilo que, muitas vezes, gostaríamos que os outros fizessem por nós. Essa dói um pouco mais, porque mexe em lugares relacionados às nossas expectativas — ao amor, atenção e cuidado que esperamos receber de outras pessoas.
Durante muitos anos, da adolescência ao início da vida adulta, trabalhei em horários e escalas malucas nas quais folgava durante a semana enquanto a maioria das pessoas estava trabalhando em sua escala comercial tradicional. Isso fazia com eu tivesse pouca (ou nenhuma) companhia para fazer as coisas que tinha vontade, como conhecer restaurantes novos, ir ao cinema, a exposições de arte ou parques da cidade.
O resultado? Comecei a ir sozinha e peguei um gosto tremendo por esses momentos na minha própria companhia.
Desde então, ficar e/ou sair sozinha pelo menos uma vez na semana tornou-se um compromisso que tenho comigo e que é tão sagrado quanto todas as demais obrigações da vida adulta. Tomo cafés superfaturados pela cidade, caminho no parque com a Amorinha, conheço restaurantes diferentes e vou ao cinema ver filmes cabeçudos sem me preocupar com mais nada.
Essas pequenas ações me ensinaram a ir além.
Passei a me arrumar com o único objetivo de agradar a mim mesma, a comprar flores para a minha casa ao invés de esperar ganhá-las de alguém, a me exercitar para celebrar meu corpo e não para adequá-lo a um padrão de beleza inalcançável, a me preocupar com o meu bem-estar sem precisar que outras pessoas olhem por mim.
Eu mesma já atendo às minhas próprias expectativas e quando, afortunadamente, tenho pessoas se preocupando e cuidando de mim também, isso é um bônus; vejo-o como um presente da vida.
se autocuidar é honrar seus próprios compromissos,
o que, na prática, é muito mais do que se cuidar; é se admirar e construir uma confiança em si que derruba muros e levanta pontes. Para mim, essa é a ação mais importante e o que chamo de “virada de chave da vida adulta” — é o que separa meninas de mulheres e, em maior escala, mulheres de lobas.
Há não muito tempo atrás, tive um dia do mais absoluto desânimo. Precisava organizar algumas coisas e ir ao curso de pintura, mas definitivamente esse não era o meu mood; tudo o que eu queria era pedir uma pizza pro almoço, assistir Leap Year5 e passar o dia de pijamas com a Amora no sofá. A energia mais introspectiva possível.
Mas… Eu tinha um compromisso comigo. Precisava ir pra aula porque ela é parte do meu planejamento, é uma etapa dentro de um projeto maior, um grão de areia dentro de um plano geral oceânico que envolve objetivos arrojados para um, três, cinco, dez anos.
E é justamente abrir mão desses pequenos passinhos que nos fazem demorar mais, e às vezes sequer alcançar, sonhos que tanto desejamos. A grandiosa linha de chegada é composta de milhares de micropassos, um após o outro, e de tudo o que há entre eles… Sangue, suor, lágrimas, sede, dores físicas e emocionais, dúvidas, inseguranças, alegrias e, é claro, momentos de desânimo.
No fim das contas, decidi cumprir meu combinado e apenas entrar no carro, na tentativa de chegar lá superando o meu mau-humor. E a verdade é que foi um ótimo dia; aprendi uma técnica de pintura nova; desenhei a Amy Winehouse; me diverti com a turma e me senti capaz. E foi nesse mesmo dia que, voltando pra casa, tive a ideia de escrever essa newsletter, ao pensar: “não há nada mais gostoso para a minha autoestima do que a sensação de ter honrado o meu compromisso comigo mesma”.
Cada vez que assumo e honro os combinados que faço comigo, mais reforço a ideia de que posso confiar em mim porque não vou me deixar na mão. Eu tomo decisões, estabeleço etapas, cumpro o que me propuz a fazer e celebro, porque sou confiável. E já que sou confiável, posso traçar voos maiores, posso me arriscar, posso sonhar mais alto porque sei cuidar de mim.
Sei que sou capaz de sobreviver às quedas e voltar pra casa.
É um ciclo vicioso que se retroalimenta de autoconfiança. Derruba muros e levanta pontes. É desafiador, mas vale a pena.
para um 2025 mais feliz:
A de volta pra casa é o meu diário de bordo enquanto estudante de arte 30+, em busca de embelezar a vida com os pés no chão e me aprofundar em temas complexos sem perder o entusiasmo. Se você gosta do que vê por aqui, considere se inscrever para me receber em sua caixa de e-mail. Geralmente, chego com um cafézinho e resenha boa.
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Feliz ano novo, queridas leitoras. Nos vemos semana que vem.
Um beijo,
A desigualdade de gênero ocorre quando há privilégio de um gênero em detrimento de outro(s). Historicamente, os direitos e desejos dos homens se sobrepuseram aos das mulheres (e pessoas não-binárias). Essa diferença está materializada estruturalmente em nossa sociedade sob a forma do machismo. Isto porque a estrutura familiar e as relações sociais que foram sendo construídas ao longo do tempo sempre colocaram o gênero masculino no lugar mais elevado da pirâmide social — ocupando lugares de poder e fazendo posse de todas as propriedades existentes no mundo.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Putting people first in managing their health: new WHO guideline on self-care interventions. Geneva: WHO, 2021.
Solução que atua na uniformização da pele, aumentando sua hidratação, equilibrando a pele acneica e o aspecto dos poros dilatados.
Escalda-pés é uma prática milenar que consiste em mergulhar os pés em água quente, geralmente acompanhada de ervas, sais e óleos essenciais, para proporcionar relaxamento e aliviar dores.











Eu acho que eu vou levar o seu texto às minhas aulas de projeto de vida 🤭💕
Estava pensando sobre autocuidado ontem mesmo. E pra mim, tudo o que trouxe fez muito sentido. A parte que mais me pega é o que você falou sobre fazermos por nós mesmos. Sobre ir aonde queremos sem esperar ninguém, comprar flores pra você mesma. Na teoria, eu acho lindo, mas na prática, acabo não fazendo, sempre priorizando outras coisas e de certa forma, esperando que isso um dia vai acontecer sem necessariamente depender de mim.
No meu aniversário, ganhei flores lindas de uma amiga muito especial 🥹 e amei tê-las em casa, aquilo me fez pensar: pq não fazer isso mais vezes? Mas só ficou no pensamento.
É uma mudança tb, ir construindo esses pequenos momentos, né...