momentos oceânicos
#19 -- a unicidade entre o eu & todas as coisas do mundo.
Esse é mais um daqueles textos fora de qualquer planejamento, que surge pelas madrugadas insones quando menos se espera. Um daqueles textos que representa o resultado de, muitas vezes, meses e meses e meses de reflexão sobre uma questão mal compreendida, mal elaborada, mal diagramada em nosso mundo interno de ideias e toneladas de referências.
Esse é, também, mais um daqueles textos que escrevo sem nenhuma pretensão de ser lógica ou coerente. Hoje, e como já aconteceu em outros momentos por aqui, estou sustentada pela magia de experiências banais e extraordinárias — na mesma medida.
Esta semana, tive a minha primeira aula de “teoria das cores” na formação de Pintura e muitas coisas aconteceram naquela tarde nublada e parcialmente chuvosa, que deixou São Paulo com (ainda mais) cara de São Paulo, em um nível quase inacreditável.
“Teoria das cores” é o módulo que dá sequência aos “fundamentos do desenho artístico”, e o momento no qual passo a não apenas construir meus desenhos, mas também a preenchê-los com cores em tinta a óleo ou acrílica.
Essas etapas que, a grosso modo, representam o meu avanço na formação geralmente me deixam ansiosa e insegura e, adivinha só? Dessa vez não foi nada diferente. A nossa velha amiga insegurança compareceu pontualmente e deu o ar da sua graça com a sutileza de um coice de cavalo no meu peito, principalmente quando me vi frente ao exercício do dia: construir um círculo cromático de doze cores, criado somente a partir das três cores primárias (azul, amarelo e magenta).
Para te contextualizar melhor, é importante dizer que, na formação que faço, o estudo e aprofundamento das teorias deve ser feito em um momento à parte. Durante as aulas, meu trabalho é sempre pôr a mão na massa e praticar… E isso é ótimo, mas muitas vezes sinto que mal tenho tempo de compreender a real pretensão dos exercícios. Suspeito, inclusive, que essa seja uma técnica pedagógica das boas para calar o lado lógico do cérebro, estimulando apenas o lado criativo, aquele que não pensa muito.
Podemos perceber que nem sempre isso funciona comigo, rs.
Voltemos. Passados aqueles trinta segundos de puro suco do desespero, resolvi fazer a única coisa que efetivamente está sob nosso controle nessa vida: começar do começo.
Fiz, então, o esqueleto do exercício e comecei preenchendo a triangulação de cores primárias. Em seguida, sob orientação e paciência infinita do meu professor, arrisquei a primeira mistura de cores: uma dose de amarelo de cádmio com azul cerúleo.
Ainda muito contrariada, e concentrando toda a minha energia em ser cuidadosa com as proporções para que as coisas não saíssem ainda mais do meu controle, vi surgir na paleta de madeira um verde bandeira lindo, brilhante, mágico e um pouquinho mais claro do que eu precisava. Foi então que me desceu a primeira eureka do dia: tem amarelo demais aqui, preciso neutralizá-lo com um pouco mais de azul.
Quando a primeira mistura, enfim, deu certo, parti para as próximas um pouco mais confiante mas ainda impactada com o fato de que realmente três cores, e apenas três cores, poderiam criar infinitos outros pigmentos — química, para os céticos; magia, para as feiticeiras.
Conforme seguia misturando uma cor na outra e via surgir nos pinceis uma sequência de cores verdes, azuis, violetas, vermelhas, laranjas, fui sentindo uma alegria genuína e verdadeira preencher o meu corpo, como se tivesse alcançado um estado de unicidade entre mim e todas as coisas do mundo; como se, também, tivesse desnudado a minha verdadeira natureza — uma natureza de alquimia, magia, transformação e interdependência.
Foi como ver, sentir e finalmente experienciar o motivo pelo qual este meu corpo habita este plano, neste exato momento do espaço-tempo, e não em qualquer outro que possa existir. Se pararmos mais de dois segundos pra pensar com calma, viver o aqui e o agora é, de fato, um pouco mágico mesmo, ainda mais em tempos como os que vivemos, onde tudo se resume a vídeos de 15 segundos e pensamentos condensados em até 140 caracteres; onde amores são líquidos, a vista está sempre cansada e assuntos complexos são tratados com a profundidade de um pires.
Deusas me livrem.
No trânsito de volta pra casa, milagrosamente com o rádio desligado e enquanto apenas saboreava a minha maçã sem dissipar a minha atenção com estímulos em excesso, me dei conta da segunda eureka do dia: havia experimentado um momento oceânico. Não foi a primeira vez, mas foi a primeira vez que o vivi sabendo o que estava acontecendo graças à genial escritora Rosa Montero, que discorre sobre essa experiência em seu livro “O Perigo de Estar Lúcida”1. De acordo com Rosa, o termo foi inventado pelo escritor francês Romain Rolland, ganhador do Nobel de Literatura em 1915:
Rolland […] batizou de “momento oceânico” aqueles instantes de aguda e transcendente intensidade, quando seu eu se apaga e a pele, fronteira do seu ser, se dissipa, de modo que você parece sentir as células do seu corpo se expandirem e se fundirem com as outras partículas do universo. Então, nada separa sua consciência do restante do Todo. Você é o sol que arde no horizonte e o élitro queratinoso de um simples grilo. Você é a gota d’água que se une ao oceano. […] durante alguns segundos você se sente à beira da revelação, prestes a entender o segredo do mundo.
Em outras palavras, são momentos que, de forma involuntária, sentimos conscientemente a grandeza do universo e a nossa própria fragilidade, como quando estamos diante do mar num dia de praia ou por entre as nuvens numa viagem de avião. É o reconhecimento expresso de nossa vulnerabilidade, mas também do privilégio de sermos parte de algo infinitamente maior, íntegro, imperecível. É um complexo paradoxo que não pode ser explicado; é preciso experienciá-lo.
E assim, essa experiência de completa presença, linda e muito significativa em tantos aspectos, me trouxe algumas (in)conclusões que venho pensado desde então:
A mesma experiência, vivida por pessoas de ou em sintonias diferentes, pode ter desfechos absolutamente opostos. Tenho certeza que, para muitos, não há nada de mágico em misturar uma cor na outra para obter um terceiro tom. “É banal e até uma criança em fase de desenvolvimento cognitivo consegue fazer”, alguns dirão. Mas, no fim das contas, a magia está na nossa postura diante das miudezas da vida e na forma como escolhemos buscar o extraordinário até nas coisas mais triviais.
O tal “segredo” para a realização de toda e qualquer coisa está no simples (e poderoso) ato de começar. De qualquer lugar, com o nada que se sabe, com o pouco que se tem, numa avalanche de inseguranças. Parafraseando a maravilhosa Dory2, se você deixar nada acontecer com você, então nada vai acontecer com você. Quando a primeira mistura der certo, você irá se sentir mais confiante para criar as próximas cores. Eu prometo.
Pedir ajuda é importante e ouvir as orientações das pessoas mais experientes é fundamental. Se soubermos escolher bem, não estaremos sozinhas nas trincheiras da
guerravida e nosso caminho de descobertas será menos tortuoso.Para mim, que tenho uma sede insaciável e desesperadora de encontrar beleza nas maiores insignificâncias da vida, a experiência de ser uma alquimista, uma “criatura” também um pouco “criadora”, foi uma das mais especiais da minha vida e, muito provavelmente me lembrarei dela daqui cinquenta anos; do frio na espinha, da surpresa nos olhos, da felicidade gratuita. E é minha responsabilidade proteger esse momento a todo custo. Proteja suas pequenas alegrias diárias como se sua vida dependesse disso, porque depende.
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Nos vemos na próxima semana? Te espero.
Um beijo,
MONTERO, Rosa. O perigo de estar lúcida. São Paulo: Todavia, 2023.








