grosseira não, assertiva.
#04 -- vamos dar o nome certo às coisas.
permita-me começar essa news te contando uma história.
a história de uma menina de aproximadamente 10 anos, que aqui chamaremos de Abhaya1. Abhaya era uma criança muito ativa, corajosa e intensa, participava de absolutamente todas as atividades propostas pela escola e também pelos amiguinhos que tinha no seu bairro. nunca teve muita dificuldade de dizer “não” ou de tentar impor seus limites porque era muito observadora: se os meninos dizem não, eu também posso dizer, pensava ela.
conforme crescia, Abhaya era frequentemente caçoada por seus familiares e adultos ao redor, que lhe chamavam de “estressadinha”, “bravinha” e outros similares quando ela tentava manifestar suas emoções e dizer que algo a havia incomodado.
com o tempo e as circunstâncias, Abhaya passou a acreditar que era uma adolescente irritadiça, grosseira e quase violenta. erguia cada vez mais a cabeça e os punhos para defender suas opiniões com a certeza de que, não importava o quão gentil ou segura de si fossem as suas ponderações, o traço de personalidade de “pessoa estressada” fazia parte dela. lutar contra isso era uma batalha perdida e, portanto, desnecessária.
um dia, por sorte ou destino (ou um pouco de cada coisa), Abhaya cresceu. teve acesso a outras culturas, livros, discos e, principalmente, mulheres. com elas, e através delas, Abhaya percebeu que sua experiência nunca foi individual e que muitas de nós passamos pela mesmíssima situação de sermos consideradas histéricas ou grosseiras quando, na verdade, estamos apenas sendo assertivas.
Abhaya, então, passou a se tratar com mais carinho por sua coragem em defender seus ideais e ter menos vergonha por desagradar. compreendeu que o que, nela, chamavam de grosseria, em um homem seria facilmente considerado assertividade, postura, autoconfiança, objetividade, autoestima e segurança.
essa história é real e Abhaya, na verdade, sou eu.
a linguagem forma o pensamento
a professora Maria Ángeles Calero2 diz que “o pensamento se modela graças à palavra”, e a forma como nos comunicamos ou como escolhemos expressões e simbologias é exatamente o reflexo de nossos valores e pensamentos — que, em maior escala, é também o reflexo da sociedade que cria e faz uso delas.
dizendo de outro modo, a maneira como escolhemos nos referir às coisas e pessoas molda não apenas a nossa opinião pessoal sobre o mundo, mas molda o próprio mundo, categoriza o que é ou não importante e, sobretudo, determina quais são os princípios protegidos ou rechaçados coletivamente.
a ideia de que as mulheres devem “se comportar” e “se dar o respeito” para terem dignidade é antiga e há anos me debruço sobre o tema “patriarcado” na tentativa de implodir o sistema — leia-se ter menos machismo na minha própria vida. e uma das coisas que mais tem me chamado a atenção nesse boom de movimentos reacionários das redes sociais é que o problema nunca foi a forma como nos comunicamos, mas sim o conteúdo dessa comunicação.
se a sua opinião questiona aqueles que estão no poder, você será chamada de petulante.
se o seu lifestyle não contempla os costumes tradicionais, você será considerada insubordinada.
se suas ideias distorcem o status quo, você será categorizada como rebelde.
se você busca por transformações, será tratada como uma pessoa ingrata.
não se abale.
continue revolucionando.
amor & fúria
alguns meses atrás, pensando em como é possível sim sermos gentis e assertivas, firmes e amorosas, objetivas e educadas, tudo ao mesmo tempo, comecei a esboçar muito despretensiosamente um desenho que representasse alguns dos sentimentos que mais sinto em abundância: o amor e a fúria. e assim surgiu o quadro homônimo que estou me aventurando nesse momento.
highlights desse processo:
a ordem dos fatores altera sim o produto quando se trata de pintura acrílica! fiz as manchas em tinta preta nanquim e, depois, mudei os planos e resolvi pintar a onça inteira… e, é claro, estou tendo o dobro de trabalho que teria se tivesse feito o corpo e fundo antes das manchas… nada como a inexperiência para nos irritar e, depois, ensinar.
quando percebi o trabalhão que me daria colorir tudo sem prejudicar o que eu já havia cuidadosamente pintado, quis desistir, deixar pra lá e começar outro desenho do zero. mas, dessa vez, decidi confiar na minha capacidade de resolver esse rolê e me desafiei a continuar. se vai ficar bom? provavelmente não. isso importa? não também.
a prática leva ao refinamento porque, pasmem, perfeição não existe. já gostei e desgostei dessa arte uma porção de vezes, mas sempre que estou perto de desistir para começar outra coisa me lembro que a consistência é a coisa mais importante nesse processo de criar e que eu vou ficar melhor e mais técnica com o passar dele, o maioral — o tempo.
quando estamos desbravando um universo desconhecido, treinando uma nova habilidade, se dispondo a ser ruim em algo novo, uma coisa que faz muita diferença é não se sentir tão sozinha na caminhada… e vocês têm sido muito legais comigo! obrigada, de coração.
semana que vem completamos um mês de news! como o maioral está passando rápido, né? vou aproveitar o fechamento de Agosto para fazer uma retrospectiva do melhor que li, assisti, ouvi e “refleti sobre” no primeiro semestre de 2024. nos vemos lá?
um beijo,
Abhaya, em sânscrito, significa “Sem-Medo”.
Maria Ángeles Calero Fernández, em Sexismo lingüístico: Analisis y propuestas ante la discriminación sexual en el lenguaje [1999].





