me chame de bruxa
#13 -- ... e eu lhe cortejarei.
Com a costela que havia
tirado do homem,
o Senhor Deus fez uma
mulher e a levou até ele.
Disse então o homem:
"Esta, sim, é osso dos meus
ossos e carne da minha carne!
Ela será chamada mulher,
porque do homem foi tirada".
— Gênesis 2, 22-23
Um deus macho onipresente cria sozinho o Universo, em sete dias, com natureza e alimentos em abundância. No último dia, cria o homem à sua imagem e semelhança e, a partir da costela dele, cria a Mulher com o exclusivo intuito de “lhe fazer companhia”. Apesar da vida abundante, o homem é seduzido por essa Mulher ardilosa, que o leva ao pecado da carne fazendo-o cair em tentação e desobedecendo às ordens de deus. Acabam expulsos do paraíso pela desobediência ao criador e a Mulher, possuidora de grande inteligência, prazer e emoções, é capaz de desestabilizar toda a ordem vigente.
O caos. A ameaça perfeita.
Desde que consigo me reconhecer como uma mini-pessoinha questionadora de tudo e de todos, lembro-me de deixar a minha mãe (bastante católica) em incontáveis saias justas com perguntas sobre essa tal história da criação da humanidade narrada pela bíblia. Nunca fui capaz de compreender como essa coisa de sermos “um pedaço de costela de um homem” podia fazer sentido para alguém ou sequer ser digna de ser respeitada — afinal, puta conversinha sem pé nem cabeça, hein galera?
Mas é claro que essa é apenas a minha perspectiva sobre a religiosidade que, para mim, não se confunde com espiritualidade. Muito pelo contrário, sou super conectada com a minha vida espiritual, tenho práticas diárias de conexão com o Todo e sou muito alinhada à força que carrega o simples ato de acreditar, como diria Natiruts. Apenas não me identifico com nenhuma religião, apesar de defender categoricamente que você, e todas as pessoas do mundo, têm o pleno direito de exercer sua religião livremente, protegidas de qualquer tipo de intolerância religiosa.
Hoje, porém, aproveito que essa é última news de Outubro e que celebraremos o Dia das Bruxas (ou Halloween) no próximo dia 31 para compartilhar a verdadeira origem da palavra Bruxa — e o quanto tudo isso tem a ver com bíblia e religião.
Aperte o cintos e aumente o som. Vai valer a pena.
nem toda feiticeira é corcunda
"Deve-se notar que houve um
defeito na fabricação da primeira
mulher, pois ela foi formada por
uma costela de peito de homem, que
é torta. Devido a esse defeito, ela é
um animal imperfeito que engana
sempre."
— Malleus Maleficarum, parte I, questão VI
Essa complexa figura capaz de gerar e alimentar vidas através de seu próprio corpo, que sangra todos os meses e não morre, que é capaz de se conectar profundamente com outras pessoas e com a natureza, que tem ciclos alinhados à Lua e energia alinhada ao Sol, foi, ao longo de toda a história da humanidade, um dos maiores motivos de obsessão de escritores, filósofos, artistas e, é claro, fanáticos religiosos.
As capacidades femininas foram alvo de infinitos questionamentos, não com o intuito de observação e aprimoramento, mas como forma de subjulgar, inferiorizar e controlar as mulheres. Essa é a origem das tais habilidades “femininas” e “masculinas” que muito se fala atualmente e da construção do que chamamos de “gênero”.
Ou seja, se você possui um conjunto de características que são consideradas femininas pela cultura e sociedade, será socializada como mulher e esperarão de você comportamentos como a subalternidade, a sensibilidade, a maternidade, a servidão, o trabalho doméstico… Qualquer coisa fora desse padrão desqualificará a sua mulheridade.
A história relata, porém, que essa incompreensão acerca do que realmente significaria ser mulher resultou em uma das maiores perseguições às mulheres, com sua consequente morte nas fogueiras da inquisição (igreja).
O maior registro que temos sobre esse período pode ser observado através do livro “Martelo das Feiticeiras” (Malleus Maleficarum, no original), escrito por Heinrich Kraemer e James Sprenger em 1486, que foi amplamente utilizado como "manual oficial dos inquisidores” no movimento de perseguição religiosa e social contra as mulheres, que perdurou por cerca de quatro séculos, e foi denominado de caça às bruxas.
Esse movimento levou à tortura e à morte mais de cem mil mulheres sob o pretexto, por exemplo, de que elas tinham a capacidade de "copular" com o demônio. Entretanto, o que não se conta é que as mulheres consideradas bruxas eram aquelas que desenvolviam capacidades curativas através da medicina natural (chás, ervas e outros elementos naturais), que formavam alianças com outras mulheres, que eram livres para se relacionar sexualmente com quem quisessem e que lutavam por uma vida mais independente para si e para as suas.
Ou seja, bruxas eram mulheres livres como eu e você.
Por volta do século XVI, o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis. Mesmo quando não eram feiticeiras/magas experientes, chamavam-nas para marcar os animais quando adoeciam, para curar seus vizinhos, para ajudar-lhes a encontrar objetos perdidos ou roubados, para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudar-lhes a prever o futuro. Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades — como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas — que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a ordem constituída.
Silvia Federici, em “Calibã e a Bruxa”
As execuções aconteciam pelas fogueiras ou por enforcamento. Os bens das supostas feiticeiras eram confiscados nesse processo de execução, tornando a inquisição (ou seja, a igreja) uma instituição muito, muito rica.
Esse genocídio foi perpetrado na época em que se formavam as sociedades modernas européias e, por isso, tem grande influência na evolução sociocultural pós caça às bruxas. Uma das conseqüências mais frequentemente apontadas por especialistas e historiadores refere-se à perspectiva dócil e submissa que se criou sobre os corpos das mulheres a partir dali, como a ideia de que nosso valor está associado à preservação da virgindidade ou que nossas virtudes estão diretamente atreladas à servidão que oferecemos aos nossos companheiros/maridos. Ou seja, a velha história de que a “mulher sábia edifica o lar”, seja lá o que quer que isso signifique.
conhecer a nossa história: esse é o verdadeiro empoderamento feminino
Conhecer a verdadeira história das mulheres tem sido um dos meus maiores objetos de pesquisa dos últimos anos e esses estudos tornaram-se a minha maior arma contra a opressão. Saber que não existem verdades absolutas, mas apenas construções de ideias, foi o que me deu poder para questionar padrões vigentes e me tornar uma mulher cada vez mais autêntica — cada vez mais minha.
Nada, para mim, foi mais significativo do que isso.
Toda vez que vejo uma mulher ser ridicularizada nas redes sociais, ou ter seu discurso questionado, ou seu corpo criticado, ou sua inteligência menosprezada, ou suas habilidades confrontadas, ou sua voz silenciada… Recorro à história e às armas que apenas o conhecimento crítico e profundo é capaz de nos proporcionar e, mais uma vez, me levanto em sua defesa.
Então hoje, através desse espaço seguro, te convido a se apropriar de sua história, honrando as nossas ancestrais que foram queimadas vivas nas fogueiras da inquisição, enforcadas sem direito à defesa, escravizadas durante quase 400 anos, violentadas e expulsas de suas terras originárias, controladas e mortas de milhares outras formas e ao longo de milhares de anos. Apropriarmo-nos de nossos corpos e ideias é a verdadeira revolução.
E quando começarem a te chamar de bruxa, acredite: é porque você definitivamente está no caminho certo.
Às bruxas dessa newsletter, dedico meu desenho dessa semana, que foi mais um exercício livre de escalas tonais, mas divertidíssimo de fazer! Espero que gostem!

Um beijo, e nos vemos na próxima semana!




Que texto PERFEITO!!!
Obrigada por isso, Bruxinha! ☺️